Thursday, May 31, 2007
O Pior analfabeto é o analfabeto político...
The Politician, acrílico s/tela, 100X81 cm, 2005
(col. José Luís Ribeiro)
O Vosso tanque General, é um carro forte
Derruba uma floresta esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
- Precisa de um motorista
O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
- Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito
- Sabe pensar
Bertold Brecht
Wednesday, May 30, 2007
CAE II - Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muita gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Cálice
Gilberto Gil/Chico Buarque - 1973
CAE I
Tuesday, May 29, 2007
Floresta de desenganos
Amazónia,
acrílico s/tela, 100x60 cm, 1998
(col. Miguel Moreira)
"A realidade é chata, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom steak".
"A vocação de um político de carreira é fazer de cada solução um problema".
"Às vezes perguntam-me por que trabalho tanto. É porque, quando ficar velho, quero pôr meus pais num asilo".
"Certa vez tomei a atitude política mais firme da minha vida: passei 24 horas sem comer uvas".
"Certo dia, atrasei-me ao voltar da escola e meus pais pensaram que eu havia sido sequestrado. E aí entraram imediatamente em acção: alugaram meu quarto".
"Como posso acreditar em Deus se, na semana passada, prendi a língua no rolo de minha máquina de escrever?"
"Discordo de Freud. Não acho que a inveja do pénis seja exclusiva das mulheres".
"Deus não existe e, se existe, não é muito confiável".
"É agradável, de tempos em tempos, tentar imaginar o que teria sido a existência se Deus tivesse conseguido um orçamento e roteirista melhores".
"E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, não há dúvida de que paguei demais por aquele carpete novo".
"Em Viena, em 1906, por cinco dólares você podia ser analisado pelo próprio Freud. Por dez dólares, Freud deixaria que você o analisasse. E, por quinze dólares, ele não apenas não o analisaria como passaria suas calças a ferro".
"Eu detestaria concluir que, sem Deus, a vida não teria sentido e, depois de dar um tiro nos miolos, ler no jornal no dia seguinte que Ele foi encontrado".
"Eu e minha mulher ficamos na dúvida entre tirar férias ou nos divociarmos. Optamos pela segunda hipótese. Duas semanas no Caribe podem ser divertidas, mas um divórcio dura para sempre".
"Eu era muito jovem para ter um carro. Então transava com as moças no banco de trás de minha bicicleta".
"Faço análise há trinta anos e a única frase inteligente que já ouvi do meu analista é a de que preciso de tratamento".
"Finalmente tive um orgasmo. Mas o médico me disse que era do tipo errado".
"Fiz um curso de leitura dinâmica e li Guerra e Paz em vinte minutos. Tem a ver com a Rússia".
"Fui criado na velha tradição judaica: nunca me casar com uma mulher gentia, nunca me barbear aos sábados e, principalmente, nunca barbear uma mulher gentia aos sábados".
"Há uma lei em Nova Iorque segundo a qual só se concede um divórcio no caso de adultério de um dos cônjuges. Bem, eu me ofereci para a tarefa".
"Juro que não sabia que Hitler era nazista. Durante muito tempo pensei que ele trabalhasse para a companhia telefónica".
"Mais do que em qualquer outra época, estamos numa encruzilhada. Um dos caminhos leva à catástrofe e ao mais terrível desespero. O outro leva à extinção total. Vamos rezar para que façamos a escolha certa".
"Meu pai trabalhou na mesma empresa durante doze anos. Eles demitiram-no e substituíram-no por uma maquininha deste tamanho, que faz tudo o que o meu pai fazia, só que muito melhor .O deprimente é que minha mãe também comprou uma igual".
"Meus pais não tinham dinheiro para me comprar um cachorro. Então levaram-me a uma loja de animais e compraram-me uma pulga. Eu chamava-a Manchinha".
"Meus reflexos não são muito bons. Certa vez fui atropelado por um carro que estava sendo empurrado por dois sujeitos".
"Minha primeira mulher era muito infantil quando nos casámos. Um dia, eu estava tomando banho na banheira e ela afundou todos os meus barquinhos sem o menor motivo".
"Minhas notas na escola variaram de abaixo da média a abaixo de zero. Fui reprovado no exame de Metafísica. O professor acusou-me de estar olhando para a alma do rapaz sentado ao meu lado".
"Na Califórnia não se joga o lixo fora. Eles reciclam-no na forma de programas de TV".
"Não apenas Deus não existe, como tente encontrar um canalizador num fim de semana".
"Não despreze a masturbação - é fazer sexo com a pessoa que você mais ama".
"Não que eu esteja com medo de morrer. Eu só não queria estar lá quando isso acontecesse".
"O crime organizado na América rende 40 bilhões de dólares. É muito dinheiro, principalmente quando se considera que a Máfia quase não tem despesas de escritório".
"O mundo divide-se em pessoas boas e pessoas más. As pessoas boas têm um sono tranquilo. As pessoas más se divertem muito mais".
"Por que Deus não fala comigo? Se Ele pelo menos tossisse!"
"Por que escovar os dentes quatro vezes ao dia e fazer sexo duas vezes por semana? Por que não o contrário?"
"Quando comecei a escrever, tentei vender a história de minha vida sexual para uma editora. Eles a compraram e a transformaram num joguinho de armar para crianças".
"Quando eu era pequeno, meus pais descobriram que eu tinha tendências masoquistas. Aí passaram bater-me todo dia, para ver se eu parava com aquilo".
"Se Deus existe, por que Ele não me dá um sinal de Sua existência? Como, por exemplo, abrir uma bela conta em meu nome num banco suíço".
"Se eu acho que sexo é sacanagem? Só quando é bem feito".
"Sempre achei que iria levar anos para fracassar da noite para o dia".
"Todas as minhas tentativas de suicídio foram um fiasco. Eu vivia abrindo as janelas e fechando o gás".
"Para você eu sou um ateu; para Deus, sou a Oposição Leal".
"Você pode viver até os cem anos se abandonar todas as coisas que fazem com que você queira viver até os cem anos."
"A única coisa que lamento na vida é que não sou outra pessoa qualquer".
"Não posso escutar muito Wagner. Fico com vontade de invadir a Polónia".
Woody Allen
Thursday, March 29, 2007
Com a Cabeça entre as Orelhas
Auto-retrato Azul, acrílico s/tela, 81X100cm, 1998
(vendido na Casa do Canto, Ancas, Anadia)
Tuesday, March 13, 2007
Igreja de Vouzela
Igreja de Vouzela
acrílico e óleo s/tela, 60X50cm, 2000
Seus Olhos
Seus olhos... se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou...
Não tinham luz de brilhar.
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno!...e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, num só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.
Almeida Garrett
Tuesday, March 6, 2007
A Carta
Cocuana, acrílico s/tela, 80X70cm, 2004
(col. Mário Costa)
A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria doença do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades. Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma, já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.- Outra vez, mamã Cacilda?- Sim, maistravez.Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração. Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado, seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas, pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras. O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor? Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras, meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia. Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.- Entenda, mamã Cacilda.Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia, debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.- Continua. Por que paraste?Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade, trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas. Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre, a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos. A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha, porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente. Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto? Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.- Me vens ler o meu filho?Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance, que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo. Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira. Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço. Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos que já lhe concedera.
Wednesday, February 28, 2007
Amiga
Cabeça de Cristo, acrílico s/tela, [1998]
(col. Graça Marques)
Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill
Saturday, February 24, 2007
Homenagem a Alberto Pimenta II
Descobrimentos, acrílico s/tela, 130X89cm, [1998]
(col. Carlos Tenreiro)
I
O pequeno filho-da-puta é sempre um pequeno filho-da-puta;mas não há filho-da-puta,por pequeno que seja,que não tenha a sua própria grandeza,diz o pequeno filho-da-puta.no entanto, há filhos-da-puta que nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos, diz o pequeno filho-da-puta.de resto,os filhos-da-puta não se medem aos palmos, diz ainda o pequeno filho-da-puta.o pequeno filho-da-puta tem uma pequena visão das coisas e mostra em tudo quanto faz e diz que é mesmo o pequeno filho-da-puta.no entanto,o pequeno filho-da-puta tem orgulho em ser o pequeno filho-da-puta.todos os grandes filhos-da-puta são reproduções em ponto grande do pequeno filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta. dentro do pequeno filho-da-puta estão em ideia todos os grandes filhos-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.tudo o que é mau para o pequeno é mau para o grande filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.o pequeno filho-da-puta foi concebido pelo pequeno senhor à sua imagem e semelhança,diz o pequeno filho-da-puta.é o pequeno filho-da-puta que dá ao grande tudo aquilo de que ele precisa para ser o grande filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.de resto, o pequeno filho-da-puta vê com bons olhos o engrandecimento do grande filho-da-puta:o pequeno filho-da-putao pequeno senhor Sujeito Serviçal Simples Sobejo ou seja,o pequeno filho-da-puta.
II
O grande filho-da-puta também em certos casos começa por ser um pequeno filho-da-puta,e não há filho-da-puta, por pequeno que seja, que não possa vir a ser um grande filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.no entanto,há filhos-da-putaque já nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos, diz o grande filho-da-puta.de resto,os filhos-da-puta não se medem aos palmos, diz ainda o grande filho-da-puta.o grande filho-da-puta tem uma grande visão das coisas e mostra em tudo quanto faz e diz que é mesmo o grande filho-da-puta.por isso o grande filho-da-putatem orgulho em ser o grande filho-da-puta.todos os pequenos filhos-da-puta são reproduções em ponto pequeno do grande filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.dentro do grande filho-da-puta estão em ideia todos os pequenos filhos-da-puta,diz o grande filho-da-puta.tudo o que é bom para o grande não pode deixar de ser igualmente bom para os pequenos filhos-da-puta,diz o grande filho-da-puta.o grande filho-da-puta foi concebido pelo grande senhorà sua imagem e semelhança,diz o grande filho-da-puta.é o grande filho-da-puta que dá ao pequeno tudo aquilo de que ele precisa para sero pequeno filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.de resto,o grande filho-da-puta vê com bons olhos a multiplicação do pequeno filho-da-puta:o grande filho-da-putao grande senhor Santo e Senha Símbolo Supremo ou seja,o grande filho-da-puta.
[Alberto Pimenta]
Homenagem a Alberto Pimenta I
Kasbah, acrílico s/tela,130X89, [1995]
(col. Paula Rovira)
heitor fragoso morreu atropelado.foi levado para o hospital, mas esqueceram-se duma parte do corpo no local do acidente./
manuel testa morreu sem se ter conseguido habituar a este modode mal-estar no mundo./
arnaldo rodrigues caiu a um buraco da canalização e nunca mais foi visto./
jeremias cabral pôs termo à existência por motivos desconhecidos./
zeca gomes morreu em defesa da pátria mas a pensar noutra coisa./
antónio de oliveira morreu igual a si mesmo: triste sinal dos tempos!/
bernardo leite pôs-se a pensar na morte e não conseguiu voltar atrás./
ivo gouveia tinha uma agência funerária e escolheu para si um caixão representativo./
guilherme silva fechou-se no sótão, para morrer num lugar elevado./
luís dimas respirava saúde, agora respira um hálito de eternidade./
antónio garcia, o coveiro, teve uma síncope e caiu dentro da cova que estava a abrir./
bento nogueira engasgou-se com um pedaço de carne e desapareceu do nosso convívio./
paiva de jesus enforcou-se./
joão baptista viu o cunhado levantar-se do caixão e teve uma síncope./
lourenço pinheiro estava a ver atrovoada e um relâmpago entrou-lhe por um olho e saiu-lhe pelo outro./
jorge velez de castro finou-se após uma longa vida de sacrifícios, toda dedicada ao bem-comum. e foi assim: depois de ter ingerido o seu sumo de laranja, foi conduzido para a cadeira de repouso pelo enfermeiro de confiança. nela se conservou, de boca entreaberta e olhos fechados, até às onze horas. às onze horas, o enfermeiro de confiança aproximou-se com a intenção de o conduzir ao banho. pondo delicadamente a mão nas costas da cadeira, disse: são horas do banho, senhor director. como este não desse sinal de ter ouvido, o enfermeiro de confiança, com a costumada jovialidade, debruçou-se e repetiu: são horas do banho, senhor director. posto isto, empurrou a cadeira até ao balneário, passou um braço pelos rins outro por baixo dos joelhos do director, e assim o levou para a água, só então se dando conta de que ele já não vivia./
zé maria, o peidolas, foi expulso da vida pela autoridade competente./
joão gaspar foi um nobre e valoroso homem que morreu heroicamente no campo da honra. paz à sua alma./
raul santos deitou-se um dia e por mais que o sacudissem nunca mais se levantou./
alfredo penha caiu tão desastradamente da cama que nem é possível dar pormenores da sua morte./
joaquim perestrelo morreu no meio da missa, qual quê! ainda a missa não ia a metade!/
sousa dias morreu de pé, mas enterraram-no deitado, como toda agente.
Bernardo Soares
Fernando Pessoa, óleo s/cartão, 100X70cm, [1998]
(col. Miguel Moreira)
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
Neon
Tuesday, February 6, 2007
Poeira Có(s)mica
Monday, February 5, 2007
Teias e Caras
Thursday, February 1, 2007
Canção da Cidade Adormecida
Coimbra, óleo s/tela, 100X100cm, 2005
(col.Mário Mourato)
Diz-me tu ó cidade...
Em que sonhos no teu ventre
guardas
Essas capas de liberdade
Se na revolta da mocidade
Não há cavalos nem espadas.
Diz-me tu ó cidade
Em que desenganos me embalas?
Se adormecendo a saudade,
Lhe vais roubando a eternidade
Que cruelmente me calas!
Diz-me tu ó cidade...
Porque desarrumas meu peito?
Se vence em mim o teu rio,
Que espera que passe um navio
De sonhos e mágoas refeito.
Eduardo Filipe
Wednesday, January 31, 2007
O Despero da Piedade!
Ode aos Calhordas
O Dia da Criação
Young Christ, acrílico s/tela, 35X50 cm, 2006
(disponível)
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo o mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é dia de presente
O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado. (...)
Vinicius de Moraes
Friday, January 26, 2007
Nevoeiro
(col.Guida Cândido)
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,/
Define com perfil e ser/
Este fulgor baço de terra/
Que é Portugal a entristecer-/
Brilho sem luz e sem arder,/
Como o que fogo-fátuo encerra./
Ninguém sabe que coisa quere/
Ninguém conhece que alma tem/
Nem o que é mal nem o que é bem./
(Que ânsia distante perto chora?)/
Tudo é inceto, nada é inteiro./
Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../
É a Hora!
Fernado Pessoa
Crucificação
Vozes do Mar
Tuesday, January 23, 2007
Melancia / Melão
(col. do autor)
Incongruência / Contradição
Veemência / Contravenção
Eloquência / Vaporização
Ignorância / Contaminação
Gerência / Masturbação
Sapiência / Direcção
Inconsequência / Ejaculação
Cedência / Capitulação
Credência / Cadeirão
Clemência / Canonização
Maledicência / Vacinação
Saliência / Foguetão
Carência / Anulação
Insignificância / Situação
Paciência / Trepanação
Cartomância / Castração
CIA / Cão
Dissidência / Deportação
Displicência / Mastreação
Dissonância / Ablação
Extravagância / Extradição
Fragrância / Exumação
Ganância / Saturação
Existência / Extinção
Jactância / Ebulição
Dependência / Escaldão
Delícia / Precaução
Deliquescência / Desagregação
Deliquência / Exultação
Arborescência / Razão
Estância / Declaração
MELANCIA!
MELÃO!
Friday, January 19, 2007
Teias e silêncios
Thursday, January 18, 2007
Tuesday, January 16, 2007
Álvaro
Ricardo
Pessoa, acrílico s/tela, 35X50cm, 2006
(col. Alfredo Vieira)
O
Catavento
Gira sobre
Quatro pontos cardeais.
Tem
Um
Ponteiro
Ao
As Ocarinas
Underground, acrílico s/tela, 50X60cm, 2ooo
(col.Galeria O Rastro)
Passa a banda
Passa o bombo
Toca o samba
Assusta o pombo
P'lo ar a baquette
Estilhaço de coração
E o clarinete
De tromba negra p'ró chão
Passam as ocarinas
Vestidas a rigor
Da cor das tangerinas
Sabem as modas de cor
Normais e normalizadas
Casuais e bem casadas!
Monday, January 15, 2007
Alberto Caeiro
Pessoa, acrílico s/ tela, 35X50cm, 2006
(col. Guida Cândido)
Gelo
Padrão
Palmeiras
Kid Crioulo