Search This Blog

Wednesday, February 28, 2007

Amiga


Cabeça de Cristo, acrílico s/tela, [1998]


(col. Graça Marques)













Mal nos conhecemos


Inauguramos a palavra amigo!


Amigo é um sorriso


De boca em boca,


Um olhar bem limpo


Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.


Um coração pronto a pulsar


Na nossa mão!


Amigo (recordam-se, vocês aí,


Escrupulosos detritos?)


Amigo é o contrário de inimigo!


Amigo é o erro corrigido,


Não o erro perseguido, explorado.


É a verdade partilhada, praticada.


Amigo é a solidão derrotada!


Amigo é uma grande tarefa,


Um trabalho sem fim,


Um espaço útil, um tempo fértil,


Amigo vai ser, é já uma grande festa!


Alexandre O'Neill






Saturday, February 24, 2007

Homenagem a Alberto Pimenta II



Descobrimentos, acrílico s/tela, 130X89cm, [1998]

(col. Carlos Tenreiro)

I

O pequeno filho-da-puta é sempre um pequeno filho-da-puta;mas não há filho-da-puta,por pequeno que seja,que não tenha a sua própria grandeza,diz o pequeno filho-da-puta.no entanto, há filhos-da-puta que nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos, diz o pequeno filho-da-puta.de resto,os filhos-da-puta não se medem aos palmos, diz ainda o pequeno filho-da-puta.o pequeno filho-da-puta tem uma pequena visão das coisas e mostra em tudo quanto faz e diz que é mesmo o pequeno filho-da-puta.no entanto,o pequeno filho-da-puta tem orgulho em ser o pequeno filho-da-puta.todos os grandes filhos-da-puta são reproduções em ponto grande do pequeno filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta. dentro do pequeno filho-da-puta estão em ideia todos os grandes filhos-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.tudo o que é mau para o pequeno é mau para o grande filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.o pequeno filho-da-puta foi concebido pelo pequeno senhor à sua imagem e semelhança,diz o pequeno filho-da-puta.é o pequeno filho-da-puta que dá ao grande tudo aquilo de que ele precisa para ser o grande filho-da-puta,diz o pequeno filho-da-puta.de resto, o pequeno filho-da-puta vê com bons olhos o engrandecimento do grande filho-da-puta:o pequeno filho-da-putao pequeno senhor Sujeito Serviçal Simples Sobejo ou seja,o pequeno filho-da-puta.


II


O grande filho-da-puta também em certos casos começa por ser um pequeno filho-da-puta,e não há filho-da-puta, por pequeno que seja, que não possa vir a ser um grande filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.no entanto,há filhos-da-putaque já nascem grandes e filhos-da-puta que nascem pequenos, diz o grande filho-da-puta.de resto,os filhos-da-puta não se medem aos palmos, diz ainda o grande filho-da-puta.o grande filho-da-puta tem uma grande visão das coisas e mostra em tudo quanto faz e diz que é mesmo o grande filho-da-puta.por isso o grande filho-da-putatem orgulho em ser o grande filho-da-puta.todos os pequenos filhos-da-puta são reproduções em ponto pequeno do grande filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.dentro do grande filho-da-puta estão em ideia todos os pequenos filhos-da-puta,diz o grande filho-da-puta.tudo o que é bom para o grande não pode deixar de ser igualmente bom para os pequenos filhos-da-puta,diz o grande filho-da-puta.o grande filho-da-puta foi concebido pelo grande senhorà sua imagem e semelhança,diz o grande filho-da-puta.é o grande filho-da-puta que dá ao pequeno tudo aquilo de que ele precisa para sero pequeno filho-da-puta,diz o grande filho-da-puta.de resto,o grande filho-da-puta vê com bons olhos a multiplicação do pequeno filho-da-puta:o grande filho-da-putao grande senhor Santo e Senha Símbolo Supremo ou seja,o grande filho-da-puta.


[Alberto Pimenta]

Homenagem a Alberto Pimenta I


Kasbah, acrílico s/tela,130X89, [1995]

(col. Paula Rovira)









artur hipólito morreu com 62 anos, 20 anos após ter feito 42, mas na altura quem diria?/


heitor fragoso morreu atropelado.foi levado para o hospital, mas esqueceram-se duma parte do corpo no local do acidente./


manuel testa morreu sem se ter conseguido habituar a este modode mal-estar no mundo./


arnaldo rodrigues caiu a um buraco da canalização e nunca mais foi visto./


jeremias cabral pôs termo à existência por motivos desconhecidos./


zeca gomes morreu em defesa da pátria mas a pensar noutra coisa./


antónio de oliveira morreu igual a si mesmo: triste sinal dos tempos!/


bernardo leite pôs-se a pensar na morte e não conseguiu voltar atrás./


ivo gouveia tinha uma agência funerária e escolheu para si um caixão representativo./


guilherme silva fechou-se no sótão, para morrer num lugar elevado./


luís dimas respirava saúde, agora respira um hálito de eternidade./


antónio garcia, o coveiro, teve uma síncope e caiu dentro da cova que estava a abrir./


bento nogueira engasgou-se com um pedaço de carne e desapareceu do nosso convívio./


paiva de jesus enforcou-se./


joão baptista viu o cunhado levantar-se do caixão e teve uma síncope./


lourenço pinheiro estava a ver atrovoada e um relâmpago entrou-lhe por um olho e saiu-lhe pelo outro./


jorge velez de castro finou-se após uma longa vida de sacrifícios, toda dedicada ao bem-comum. e foi assim: depois de ter ingerido o seu sumo de laranja, foi conduzido para a cadeira de repouso pelo enfermeiro de confiança. nela se conservou, de boca entreaberta e olhos fechados, até às onze horas. às onze horas, o enfermeiro de confiança aproximou-se com a intenção de o conduzir ao banho. pondo delicadamente a mão nas costas da cadeira, disse: são horas do banho, senhor director. como este não desse sinal de ter ouvido, o enfermeiro de confiança, com a costumada jovialidade, debruçou-se e repetiu: são horas do banho, senhor director. posto isto, empurrou a cadeira até ao balneário, passou um braço pelos rins outro por baixo dos joelhos do director, e assim o levou para a água, só então se dando conta de que ele já não vivia./


zé maria, o peidolas, foi expulso da vida pela autoridade competente./


joão gaspar foi um nobre e valoroso homem que morreu heroicamente no campo da honra. paz à sua alma./


raul santos deitou-se um dia e por mais que o sacudissem nunca mais se levantou./


alfredo penha caiu tão desastradamente da cama que nem é possível dar pormenores da sua morte./


joaquim perestrelo morreu no meio da missa, qual quê! ainda a missa não ia a metade!/


sousa dias morreu de pé, mas enterraram-no deitado, como toda agente.



Alberto Pimenta, Fastos III

Bernardo Soares



Fernando Pessoa, óleo s/cartão, 100X70cm, [1998]

(col. Miguel Moreira)















Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

Neon


Cabeça de Cristo, acrílico s/tela, 100X81cm, [1999)


(col. Colégio de Quiaios)













Finge

Que não

Estás morta

Nem escondida

Na penumbra

De um neon

Colorido.

Púrpura,

Etéreo,

Etílico,

Sirílico,

Nem preto

Nem branco.

Tuesday, February 6, 2007

Poeira Có(s)mica

Tierra Ensangrentada, 60X100cm,1998
(col.José Luís Ribeiro)











(...)

Compreende-se.

Mais Império, menos império.

mais faraó, menos faraó,

será tudo um vastíssimo cemitério,

cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.

Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

António Gedeão

Monday, February 5, 2007

Teias e Caras


Teias e Caras, acrílico s/tela, 3550cm, 2006
(col. Carlos Fernandes)
(...)
Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como água explodindo em convulsão
Onde é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como lua parindo desilusão (...)
Vinicius de Moraes

Thursday, February 1, 2007

Canção da Cidade Adormecida



Coimbra, óleo s/tela, 100X100cm, 2005

(col.Mário Mourato)

Diz-me tu ó cidade...

Em que sonhos no teu ventre

guardas

Essas capas de liberdade

Se na revolta da mocidade

Não há cavalos nem espadas.

Diz-me tu ó cidade

Em que desenganos me embalas?

Se adormecendo a saudade,

Lhe vais roubando a eternidade

Que cruelmente me calas!

Diz-me tu ó cidade...

Porque desarrumas meu peito?

Se vence em mim o teu rio,

Que espera que passe um navio

De sonhos e mágoas refeito.

Eduardo Filipe